Aqui há uns dias, em conversa com um recente (mas excelente) amigo católico, referi que tinha frequentado um colégio religioso. O comentário dele foi espontâneo, natural e desculpabilizante:
"Ah, andou num colégio de freiras. Por isso não é católica!"
Não me calei, então. E não calo, aqui e agora, a minha indignação por esta frase que – apesar de inócua na sua singela aparência – é grave porque resulta de (in)verdades adquiridas e esconde um enraizado fundamentalismo.
Em primeiro lugar, a ideia de que os colégios religiosos produzem mais ateus do que o Salazar produziu comunistas é, em minha opinião, profundamente errada e injusta.
Nasci numa família laica – que frequentou colégios de várias ordens religiosas – e nunca vi (ou me foi referida) qualquer atitude ou mera sugestão de pressão por parte dos religiosos.
Bem ao contrário.
Nas vésperas do meu crisma, fui falar com a freira responsável pela nossa preparação e disse-lhe, em resumo, que não podia, honestamente, confirmar a fé que não tinha, porque tudo o que tinha era uma imensa dúvida "para dizer o mínimo". A freira escutou tudo isso (e o restante arrazoado de disparates irreverentes que os meus onze anos permitiam) com um ar sério e tranquilo. E desdramatizou: "Francisca, parece-me que tem dúvidas. Mais do que certezas, tem dúvidas. E isso é bom. E é bom que se habitue a elas. As dúvidas atravessam-nos a vida. Eu também tive dúvidas antes do crisma e li, li muito…e olhe para mim agora (exibindo, sorridente, o hábito da sua ordem). Por isso, leia, leia muito mas, entretanto, faça-me um favor pessoal: crisme-se. Se voltar a não acreditar, o crisma não terá, para si, qualquer valor. Se voltar a acreditar, arrepende-se de o não ter feito."
Só os "não profissionais" revelam uma certa tendência para se sentirem ameaçados pela convicção ou falta dela nos outros.
E isso reconduz-me ao segundo vício contido naquela branda frase: o fundamentalismo – mesmo que inocentemente encapotado – dos "amadores".
A inserção num grupo ou a aceitação de integração nele por um motivo tem subjacente uma pré-exclusão onde a tolerância parece ser letra morta:
"Não é católica, mas tem uma desculpa, uma atenuante"… mesmo que essa justificação se reduza a um "passa-culpas" para a instituição dos profissionais que deveria defender-se.
Na altura dos "porquês" brandi com o Nietzsche e argumentei com o Bertrand Russell… só nos olhos dos verdadeiros profissionais vi espelhado o sorriso respeitoso e a tolerância.
Aprendi com os laicos e com os religiosos que assumir o que pensamos, admitir os erros e aceitar as ideias dos outros é a forma mais saudável de estar na vida.
Não pertenço ao grupo dos católicos (nem sequer dos cristãos) e não tenho nenhuma desculpa a apresentar, nem preciso de qualquer justificação para isso. Não sou…
mea culpa.
E se os amadores – que maquinalmente batem com a mão no peito – não questionam nem assumem a sua responsabilidade pelos actos de intolerância que nos fazem cair nos fundamentalismos, isso aborrece-me mas, também, me ultrapassa.
Correndo o risco da generalização perigosa, tenho para mim que o "amadorismo"
versus "profissionalismo" não se limita ao campo religioso. Estende-se a quase todos os espaços da nossa vida. E o fundamentalismo, esse grassa porque é, sempre, o resultado das cegas certezas amadoras.
Com tudo se aprende, excepto com o que se não põe em questão. Mas temos que ser nós a fazê-lo. A tentar apreender o significado das coisas…
Termino usando, abusivamente, a frase lapidar com que Thoreau finalizou o seu "Walden" (
mea culpa):
I do not say that John or Jonathan will realize all this; but such is the character of that morrow which mere lapse of time can never make to dawn. The light which puts out our eyes is darkness to us. Only that day dawns to which we are awake. There is more day to dawn. The sun is but a morning star.